20100601

Ventura

Um semblante imóvel e inexpressivo abordou-me serenamente. Ao fim da ligação, a certeza do próximo capítulo, a fotografia que se seguia. E com um vago caminhar segui em direção à estação. O caminho não mais faz sentido quando previsto. E a mirar a janela e toda a paisagem a correr, sussurrava em voz rouca:
- O mundo em tenro movimento e meu corpo em elegante distância.
Vejo-me sozinho no vagão, nem sequer uma pobre alma me acompanharia sabendo do que me espera... E enfim ouço o apito de minha sentença, levanto-me e desço do trem como segui-se direto ao purgatório.
Quando ao impulso do vento desperto desta inércia, vejo a cerrados olhos, o Mar - morada desta alma conforta e cicatrizada -, sem cerimônias pego a batida estrada de barro, e a jogados passos assanho a poeira que me acompanha.
Sem demoras recolho o envelope, deixado na caixa de correspondências, como instruído ao telefone. Meus olhos nem ousam a examiná-lo enquanto caminho em direção à porta. Ao adentrar em meu refúgio, recoberto de tristes venerações, o adiar do previsto pareceu-me agradável, e a cada degrau adormecia em meio a lembranças, tantas já pranteadas. Uma volta e meia separava o onírico do martírio. - apesar de residir sozinho, mantenho sempre a porta de meu quarto trancada, neste recanto aprisiono meus reflexos, faces que o mundo nunca hão de enxergar. -
Um último suspiro me dá forças, antes da viagem a um pretérito marcado pelo irreal. Esboço um sutil movimento a fim de libertar um lampejo pela cortina aprisionado, e então rasgo a lateral do pesado envelope azul, rabiscado com minhas iniciais. Sincronizado com a lágrima cortante em meu rosto, o anel escorre por dentro do envelope ao encontro da pálida e trêmula palma que o acolhe. O sorriso que se segue desvia a trajetória deste brilho, que só cessa ao encontrar-se com o trabalhado metal. Era essa surpresa que temia; era essa certeza que mantinha. Como que por impulso, coloco o anel gélido e salgado. E ao fechar os olhos, estou a cair em um abismo de vozes avulsas, a assistir um filme de imagens mudas. Minha alma estava decomposta e fragmentada em cada ranhura deste círculo simbólico. Intensa dor e sofrimento, enquanto repassava inconsciente esses momentos, sentia o peito apertado e pulsando desesperado.
Nesse estado rasguei o envelope de vez, revelando-se um papel cuidadosamente dobrado, de aroma familiar. Decifrei a fragrância com um triste suspiro: era o perfume que me seduzira na noite de nosso encontro. Ao passar rapidamente o olhar por toda a carta, a joguei em cima da mesa, dei um sorriso que cortara minha alma em mil pedaços, e calcei os apertados sapatos. Agonizante aquele ambiente se tornara, sufocado em meio à fúria, amassei-a e atirei ao lixo.
Ao sair bruscamente, a batida da porta ecoou em meu abatido corpo. Fui do ódio ao amor sentado no sétimo degrau das escadas. Sob a fraca luz vinda do vitral de mosaicos abstratos, fui absorto em uma paz e plenitude divina. Meu corpo disperso em meio as cores alaranjadas do crepúsculo, ressaltava a aura obscura que se seguia vindo do anel. Como se o perfume o impregnasse com as tantas dores encaradas de sorriso amarelo. Uma delicada essência parecia pairar sobre mim, e após alguns rodeios, admirei o espírito de olhos cheios e harmoniosos, admirei-a como que pela última vez. Parada e formosa ali estava Scarlet, a quem por muito acreditei amar e por pouco pusera-me a chorar. Após uma longa troca de penados olhares, ela murmurou preces amorosas, e com uma face indiferente, e tom maquinal, solfejava canções e juras de amor eterno. Ao fim de suas amargas palavras, com repúdio, entoei abalado e de olhar profundamente cadavérico:
- Precisastes de todos estes anos, a notar que por ti, era loucamente enamorado. Achas mesmo que um escrito de meia folha e cânticos meramente massificados, reverte e cura a simetria de um corpo desfigurado? Não falo só de minha alma, a qual pisastes e a esqueceu na primeira esquina, falo de um corpo. Falo da dor física que me causaste. Um peito destroçado e olheiras profundas de madrugadas a louvar-te loucamente.
Proferi estas palavras com entonação perturbada e soluçada. Como que hipnotizado fitei-a dando-me as costas e descendo pacificamente as escadas. Ao mirar o anel, percebi uma linha, uma minúscula neblina de tom negro que o ligava ao espectro que deslizava sobre os degraus. Ao fim da escada, fui puxado bruscamente para frente, e forçado fui a acompanhar o espírito que levitava em direção a saleta. Scarlet aproximou-se da vitrola, e colocou um disco com algumas inscrições no verso, e soltou levemente a agulha.A melodia que se seguia, nosso hino de amor platônico, eram as palavras que eu sempre estava a cantarolar, a música que embalava meu sono e despertava-me, com um rosto úmido e triste, das minhas ilusões vitais...
'' Os pássaros vêm
Me levar aí
Visitar o céu
E pra ver você levantando o véu
Pra mim ...''
E um longo assobio, de altos e baixos, escapou de meus lábios, seguindo a melodia com euforia.Envolto a uma atmosfera de cores, imagens e gostos vi-me a um palmo do chão, e sutilmente fui ganhando alguns metros do solo, e logo pela janela planei sem esforço. Aos poucos, belos e alvos pássaros me guiaram por entre as nuvens de sincronia lenta e uniforme.
Tua figura deitada em mantos brancos e radiantes a sete passos meus, ritmou minha respiração como se estivesses comigo. E a passos confiantes, te desejando a cada suspiro, deitei-me e fiz dos teus seios o maior dos frutos proibidos, e senti um último gozo pecaminoso em teus castos braços.
Do alto deste berço de agonias e prazeres, admiro a divina vista panorâmica de todo o mundo.
E com arregalados olhos, vejo-me em terra caminhando a encontrar a beira do cais, onde os barcos aportam de suas curtas viagens. Ando com receio, tropeçando em meus próprios passos...
- Scarlet roubaste minha alma? Meu corpo anda inanimado e pálido por dentre as amarras dos barcos pesqueiros. Deixe-me descer, acorda-me deste sonho turbulento. Traz-me de volta à vida!
E uma risada demoníaca ecoou por todos os lados. Sucedendo este ruído tão monstruoso o espectro de minha amada, dilui-se em meio à brisa de ar tão puro, e após um breve silêncio, um gemido de agonia e alegria mescla-se em meus ouvidos, e então a doce voz de Scarlet me consome:
- Ainda és a mesma criança, Victor.Tua eterna infantilidade e crença tão cega, sempre te derruba e fazes da tua face, um espelho trincado e empoeirado. Os que se oferecem a restaurá-lo notam teu frágil ser e se aventuram brincando com tuas emoções, confesso que tais joguinhos são de uma diversão e tanto. Agora cala-te e resuma-se apenas a aceitar o que vê.
E com uma ânsia a escapar-me da boca, mantenho meus olhos fundos e tristes a observar a cena de meu trágico destino...
Meu corpo caminha sem vivacidade e com um quê de admiração ao se dirigir à beirada do cais. Equilibra-se, com um leve jogo de quadril, sorrindo encantado a admirar um brilho. Um astro parece estar em suas mãos, de reflexo forte e tamanho crescente. E toma novas proporções a cada piscar meu daqui de cima. Tento com os olhos arqueados identificar a razão de tanto brilho oriundo das mãos de meu corpo sem alma. Encandeado pela intensidade dos feixes, fico atordoado, e sinto um leve empurrão, um ligeiro toque, que me faz despencar do alto.
Ao cair, ainda atordoado, dirijo meu amedrontado olhar para a nuvem de onde me desprendi e reconheço algumas faces que estão a gargalhar em conjunto, vendo meu espírito em eterna queda. E com um misterioso sorriso retribuo a alegria dos que me assistem caindo. Sinto um forte impacto, uma dor viva e arrebatadora. E ao abrir os olhos, vejo em minhas mãos o metal agora de cor fosca e opaca, que brilhara por tantos anos refletindo nobres emoções, diluindo angústias. Levanto-me trêmulo, e rapidamente salto os degraus restantes da escada. Alcanço o casaco pendurado na entrada, e saio a passos certos e marcados.
Enquanto fecho o portão, o telefone toca. Ignoro-o e sigo pela rua de chão ruivo em marcha forte e tranqüila. Enquanto caminho, flashs do meu devaneio onírico de realidade assustadora me atormentavam e me guiaram ainda mais obstinado à praia. De rosto distante e pensativo, passo pelas pessoas que estão a admirar a vista do deck. Sigo obstinado até a beira da construção de madeira. Respiro fundo e pausadamente, saboreando o gosto do sereno que me acaricia.
- Tuas lágrimas são de um sabor... Scarlet.
Do capote retiro o pulsar vital de quem por mim pranteia. E o atiro as ondas que quebram, anunciando a desgraça da minha efêmera paixão. E a admirar o céu, entôo, entre sorrisos e leves suspiros, algumas palavras de musicalidade espontânea:
- Um dia tiveste este coração que agora pulsa sem obstáculos, e dele fizeste trapaça como uma criança achando-se esperta e vencedora. Agora soluças sem intervalos e pena pelo que um dia tu de mim levastes.
Estendo os braços a saudar a nova e salgada morada do círculo de metal gélido...
E ao final desta simbólica cerimônia, rumo a meu conforto caminho; meu pacato navegar em terras vermelhas, a malandros passos, acalmando a poeira que se assanha.

Nenhum comentário: